Opinião - Yuri Corrêa da Luz
Em 1983, nos estertores da ditadura militar, foi editada a Lei de Segurança Nacional, prevendo normas criminalizadoras que embasaram a prisão de manifestantes e a repressão de profissionais de imprensa.
Embora claramente incompatível com as liberdades de expressão, de imprensa e de reunião consagradas pela Constituição de 1988, a LSN apenas foi enterrada pela lei 14.197/2021. Com ela, inseriu-se no Código Penal um novo título, "Dos Crimes Contra o Estado Democrático de Direito", que revogou as criminalizações da LSN e as substituiu por normas que criminalizam atentados ao regime democrático, sem mobilizarem expressões vagas e facilmente manipuláveis por autoritarismos de plantão.

O capítulo mais conhecido deste título do Código Penal é, sem dúvida, o "Dos Crimes contra as instituições democráticas", que prevê as criminalizações de tentativa de golpe de Estado (art. 359-M) e de tentativa de abolição violenta do Estado democrático de Direito (art. 359-L), hoje em debate nas ações penais em trâmite no STF que apuram um possível movimento para subverter o resultado das eleições presidenciais de 2022.
Mas um capítulo menos conhecido desse título deveria receber maior atenção da esfera pública, sobretudo diante dos eventos que ganharam os jornais nos últimos dias: o "Dos crimes contra a soberania nacional", que prevê criminalizações voltadas a preservar a capacidade do Brasil de definir seus rumos sem interferências externas.
Embora este seja um objetivo de inegável importância, a lei 14.197/2021 não foi desenhada adequadamente para alcançá-lo. Pois, enquanto o capítulo "Dos Crimes contra as instituições democráticas" representou uma grande mudança em relação às criminalizações inconstitucionais da LSN, o capítulo "Dos crimes contra a segurança nacional" em larga medida apenas replicou as criminalizações que a lei da ditadura previu para enfrentar ameaças estrangeiras.
Para ficar em dois exemplos, o art. 359-I do Código Penal vigente, ao punir o ato de "negociar com governo ou grupo estrangeiro, ou seus agentes, com o fim de provocar atos típicos de guerra contra o país ou invadi-lo", é praticamente uma cópia do antigo art. 8º da LSN; já o art. 359-J do Código Penal, ao punir o ato de "praticar violência ou grave ameaça com a finalidade de desmembrar parte do território nacional para constituir país independente", é muito próximo do revogado art. 11 da LSN.
O problema é que, por replicar a LSN nessa matéria, a lei 14.197/2021 limitou-se a criminalizar violações à soberania nacional praticadas por meio de agressões territoriais —como tentativas de invasão, promoção de secessão etc. E, como temos visto, há muitas outras formas de se atentar gravemente contra a soberania de um país. Tarifas revelaram-se um instrumento contundente para pressionar os Poderes a agirem no interesse de um país estrangeiro.
Indo além, em um mundo onde big techs controlam cada vez mais a infraestrutura e os serviços digitais que usamos no cotidiano, não será surpresa se, no futuro próximo, ameaças de interrupção de fornecimento de internet em áreas remotas, e de corte de acesso a repositórios de arquivos em nuvem utilizados por órgãos públicos, a sistemas digitais de pagamento etc., forem mobilizadas para subjugar nosso país a grandes potências onde essas empresas estão sediadas —e com quem elas mantém uma relação cada vez mais simbiótica.
Nesse contexto, a lei penal brasileira atual tem uma capacidade muito limitada de reação. É fato que alguns eventos recentes que atentam contra a soberania nacional sem agredirem nosso território podem ser enquadrados em normas penais em vigor, como as que criminalizam a obstrução de justiça e a coação no curso do processo (art. 2º, § 1º, da lei 12.850/2013 e art. 344 do Código Penal). Mas essas normas somente alcançam interferências sobre nosso Judiciário e não protegem nosso Legislativo e nosso Executivo diante de ações que tentem ingerir sobre as leis que entendemos importantes para nosso país, ou sobre como queremos implementá-las.
A ordem mundial vive grandes mudanças. Nossas instituições têm de ler esse cenário e forjar leis adequadas para proteger nosso país contra interferências cada vez menos ortodoxas vindas de terceiros. Uma reforma desejável passa por criminalizar novas formas de violações à nossa soberania nacional, superando a lógica simplória de defesa contra agressões territoriais, que pauta nossa legislação hoje.
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